Grupo da Quinta

domingo

Artigo

























"O Canto do Teatro Brasileiro 1, o Teatro e Nosso Tempo"

Elton Bruno Soares de Siqueira

Acredito que a crítica tem a função de levantar questionamentos sobre o objeto apreciado, a fim de contribuir para uma discussão na área de conhecimento a que se dirige. No caso do teatro, a crítica deveria ter por função engrossar os debates a respeito da cena de seu tempo. É nessa perspectiva que construirei alguns poucos argumentos para justificar minha satisfação depois de assistir ao espetáculo O Canto do Teatro Brasileiro 1, do Haja Teatro & Grupo da Quinta, com encenação de João Denys e Rose Mary Martins e direção musical de Kleber Santana.

João Denys, também responsável pela dramaturgia, constrói um texto a partir da colagem de canções e fragmentos de seis peças brasileiras, que acompanharam treze anos de um dos momentos mais turbulentos da história brasileira:Arena conta Zumbi, Morte e vida severina, Gota d'água,Roda viva e Ópera do malandro.O primeiro pensamento que me ocorreu após o espetáculo foi algo que Fredric Jameson já havia defendido: como o método Brecht pode ser atual! Confesso que, após me esbaldar nas delícias estéticas que a peça me proporcionou, veio a necessidade de sistematizar meus pensamentos e atribuir um valor ao que acabara de presenciar. Pois foi isso: como Brecht nos é atual e como João Denys, Rose Mary Martins e Kleber Santana demonstraram o valor da cena épica para discutir questões nossas, contemporâneas!

Brecht defendia que a função precípua do teatro é a diversão. No entanto, ela não deveria estar desvinculada da função didática. Assim, o teatro deveria conscientizar e divertir, sem que houvesse, com isso, uma contradição necessária.O Canto do Teatro Brasileiro 1 é teatro, diversão, entretenimento e é, ao mesmo tempo, pedagógico. A música vai pontuando as cenas, que nos remetem ao Brasil dominado pelos holandeses, ao regime escravocrata, ao nordeste seco e cruel, à malandragem carioca, à roda viva do universo capitalista desumano. E tudo feito com muita arte, com um distanciamento delicado, que nos possibilita ver os fatos mostrados e fruí-los estética e racionalmente.

Os textos estão radicados nos respectivos contextos históricos, mas o espetáculo os revigora. Rende-lhes homenagem e realiza uma leitura muito ancorada no nosso presente histórico. Não entrega, todavia, o produto facilmente ao público. Constrói condições para que o espectador estabeleça as conexões. Cito apenas um exemplo. Num momento do espetáculo, Rose Mary Martins e Edjalma Freitas interpretam, respectivamente, as personagens Joana e Jasão, da peça Gota d’água. A música que dá título à peça de Chico Buarque é cantada por Joana, dirigindo-se violentamente contra Jasão. Terminada a primeira parte da canção, a atriz dá as costas a Edjalma e continua a cantar, agora numa interpretação carregada de uma dor lancinante.


Finda a segunda interpretação da música, Rose Mary tira o lenço, que servira de signo para representar a personagem Joana, solta os cabelos e ri, num típico gesto de distanciamento. Isso nos permite fixar a cena não só emocionalmente, haja vista a forte interpretação da atriz, mas racionalmente, na medida em que o tenso caso conjugal envolvendo as personagens se insere num contexto onde se revela a mais densa realidade dos cidadãos de origem popular.Se todas as canções procurassem acompanhar no mesmo tom a paixão dos acontecimentos que se desenrolam no palco, provavelmente alcançariam uma empatia maior do público, porque construiriam uma atmosfera naturalista e funcionariam para catalisar as emoções dos espectadores. Mas não é bem esse o propósito de um espetáculo como O Canto do Teatro Brasileiro, que rompe com a ilusão de realidade para ressaltar o próprio teatro e, a partir daí, propor uma discussão sobre a cultura, a política e a economia brasileiras.

Por isso, logo após algumas cenas, como a de Joana, que acabei de citar, os atores envolvidos se distanciam (tiram as máscaras) e se lançam à turba, num ritmo carnavalesco. Destaco da encenação um índice que remete a um aspecto cultural da nossa contemporaneidade. Duas atrizes, vestidas de Kôken, colocam-se na função de contra-regra, colaborando na mudança de uma cena em outra. Ora, ao contrário da visão muito tendenciosa, vale salientar, de que a cultura brasileira é única e homogênea, a encenação aposta na pluralidade, mencionando um elemento da cultura japonesa. Dessa forma, revela-se sintonizada com um mundo em que os territórios e as fronteiras se encontram tão pouco definidos. A cultura brasileira não é o Nordeste armorial, não é a malandragem carioca, não é o carnaval, não é a antropofagia. É tudo isso e muito mais. Hoje, os estudos culturais falam do multiculturalismo, do interculturalismo. Sem cair numa atitude apologética, fazendo vistas grossas às contradições que alguns desses mesmos estudos deixam de considerar, havemos de admitir que a fé na unidade cultural está cada vez mais difícil de se sustentar no estágio mais recente do capitalismo global.

As discussões mais recentes sobre o texto teatral parecem unânimes em admitir que, definitivamente, ele não pode mais ser analisado separadamente da cena. A dramaturgia e a pós-dramaturgia se tornaram um problema relevante que merece maiores investigações.O Canto do Teatro Brasileiro 1 é uma peça que nos tira da condição passiva de apreciação da culinária teatral (mais uma vez Brecht) e nos propõe uma carpintaria dramatúrgica nova, dando continuidade à exploração da cena épica como estratégia adequada para nos fazer compreender como sujeitos sociais. E o que é melhor, em vez de ser um mero exercício demonstrativo do teatro épico de Bertold Brecht, o espetáculo dialoga com as concepções do teórico alemão e dá um salto qualitativo, encontrando uma forma nova e dialética para tratar do nosso mundo contemporâneo. O grupo está de parabéns!

Foto Marcio Shimabukuro